sexta-feira, 11 de outubro de 2013

As realidades da infância popular e os nossos brasileirinhos


Hoje parecia um dia imprevisível. E foi assim. Sabe aqueles dias em que a bendita rotina não funciona, simplesmente não vai? Pois bem.

Hoje à tarde meus pais saíram para organizar os detalhes da festa de aniversário de uma amiga nossa da igreja. Eu queria muito ficar estudando em casa, e a princípio fiquei. Mas, pelo destino e mão divina eu fui com uma amiga da minha mãe até a casa de uma decoradora da minha cidade, num bairro de periferia, o Jardim Atlântico, cujas casas foram feitas pela Prefeitura.

Por que estou contando isso? Eu relativamente moro perto desse bairro e nunca tinha ido até lá. Não digo que seja um bairro de pessoas ruins, pelo contrário! Lá existem pessoas que te distribuem sorrisos e “boa tarde”, simpáticas e prestativas. Lá pude encontrar a verdadeira infância popular.

Vivemos num mundo que nós mesmos construímos. Escolhemos nossas amizades, de vida real ou virtual. Somos seletivos, julgamos muitas vezes inconscientemente. Nossa nação está se tornando cada vez mais próspera, e nós nos tornamos assim elitizados. Escolhemos fechar nossos olhos para realidades diferentes das nossas. Queremos que nossos filhos tenham sempre o melhor, porque senão for assim, eles ficarão se comparando com os amiguinhos, e poderão até se entristecer, porque não acompanham o mesmo processo capitalista de consumo. Pobres ricas crianças.

Enquanto esperava a decoradora na frente de sua casa, vi como a realidade está mais próxima do que imaginamos. Vi jovens meninas grávidas com blusas que cobriam até metade do tronco, e mostravam quase que a barriga inteira. Vi lindos bebês caminhando com suas mães. Vi uma quantidade impressionante de cachorros “vira-latas” vagueando pelas ruas, cheios de formigas, a procura de alimento. Enquanto escrevo esse artigo, me vem à memória o rosto de uma garotinha, ela havia ido numa festa para crianças numa chácara e eu estava lá. Um de seus olhinhos estava roxo e inchado. Seus cabelinhos crespos tão mal cuidados. Sua roupa era menor que ela. Chorei.

Vi um menino que aparentava ter seus 13 anos de idade, olhei em seu uniforme e reconheci o nome de uma escola pública perto da minha casa. Ele vinha a pé e sozinho. A escola é relativamente longe daquele bairro, e é preciso caminhar pela pista para chegar até lá. Ele usava chinelos velhos, e a mochila dada pelo governo era igualmente velha. Olhei para o filho da amiga da minha mãe, um menino muito esperto, ele havia levado consigo seu tablet. Eu lhe disse para agradecer a Deus pelas condições de sua família. Deus não é ruim, Ele é Pai, Ele se importa, e não dá um fardo maior do que o que podemos carregar. Aquele menino que vi voltando da escola pode ser muito feliz lá. Aliás, ver as pessoas fora de casa ao entardecer me deu uma vontade de passar uns dias lá, de jogar conversa fora com os vizinhos, de brincar com aqueles cachorros, com a leva imensa de crianças pequenas daquele lugar. Lá existem certas dificuldades, mas com certeza há amor.

Falando em amor, vi uma cena que me partiu. Um avô e seus dois netos, uma garotinha pequena, loirinha, acompanhada de uma mochila de rodinhas rosa! Vi também seu irmãozinho, um garotinho travesso! Ele jogava pedras pequenas em sua irmã, e ela então chorava e pedia que ele parasse. Às vezes, sua irmã também fazia reciprocamente o mesmo. Não parando, o avô o repreendia, mas ele continuava. Lembro-me que ele disse ao neto: “você é um menino muito mau, não serve para ser amigo, não serve para ser companheiro.” Até que em dado momento, o menino atirou uma pedra no rosto do avô. O senhor, um homem franzino e de fala difícil, se virou e se lamentou, cobrindo o rosto. Pegou então um pedaço de tijolo e ameaçou atirar no menino, que juntamente com sua irmã soluçava alguns “nãos!” cheios de temor. Tudo isso enquanto esperavam o ônibus.
Ainda vou orar por aquela família, especialmente por aquelas crianças.

Essa é apenas uma parte da infância popular, aquela para a qual promovemos alguns serviços de assistência social, políticas sociais de caráter supletivo, aquela que não nos voltamos para ela como deveríamos. Ocupamo-nos demais com nossos egos e nossos afazeres.

“Sei que o Senhor defenderá a causa do necessitado e fará justiça aos pobres.” (Salmo 140.12)


O renomado educador e especialista em infância e adolescência, Miguel Arroyo, diz em seu artigo “Repolitizar os tratos da infância e adolescência populares”:

“(...) Numa reunião para construir um projeto político-pedagógico da rede, os diretores pediram autonomia sobre os recursos, os professores, salários, os funcionários melhores condições na cozinha, na limpeza. Quanto às famílias, pediram segurança pra seus filhos. Não escola de qualidade, falaram em segurança: “Vivemos na favela, vivemos ameaçados, nossos filhos raptados, nossas filhas ameaçadas. Segurança para nossos filhos, na porta da escola, da escola até a favela. Queremos segurança e alimentação na chegada, no recreio e antes de voltar para casa”.
Os professores reagiram: mas o que é a escola? A escola é para ensinar. Nossos pratos são de conhecimento. Um debate tenso entre as famílias e os professores. Chegaram os alunos, dois alunos negros, um adolescente e uma adolescente. A secretária me falou: “Vivem na favela mais violenta da região”. Eles colocaram duas coisas: “Vocês chegam tarde” e nós esperamos. Quando chegamos atrasados e o portão está fechado, nunca nos perguntam onde e o que estávamos fazendo, porque chegamos atrasados. Estamos buscando comida, estamos trabalhando, fazemos tudo para ir à escola, mas isso não importa? Nos ensinam muitas coisas muito boas, mas não nos ensinam porque nossos pais têm de sair de casa para buscar trabalho e não encontram emprego. Porque nossas mães saem muito cedo à procura de comida para nós, por que nossos colegas morrem a cada fim de semana, por que nossas colegas se prostituem para sobreviver. Vocês não têm explicação para isso?
Lembro-me que uma professora disse: “Mas nós trabalhamos com a vida, com as ciências, não trabalhamos com a morte”. Aquilo me chocou profundamente, realmente a morte, a pobreza, o sofrimento não cabe em nenhuma disciplina. não há lugar para infâncias que sofrem. Como formar educadores capazes de trabalhar com crianças e adolescentes que vivem ameaçados de morte, na miséria, na rua, na violência, cada hora, cada dia?
Em uma escola da favela, quando fazem a chamada na segunda-feira, os alunos falam: “Professora, esse não volta mais”, morreu no fim de semana. Formas reais de viver a infância, adolescência e a juventude. Uma realidade que extrapola a infância e a história da infância. (...)
Cuidado com a retomada de visões românticas. Numa revista dedicada à educação e à infância li: “A infância sem voz nem verbo, essa já era, agora a infância é sujeito pleno de direitos, de cidadania, de autonomia”. Eu me perguntava: em que país? No nosso? Que infância? A popular? Dizer que nossa infância é um sujeito com voz, é um sujeito com autonomia não interessa a infância real sem liberdade de escolha, sem horizontes, nos limites do viver. (...)”

Em muitos dos encontros com crianças e adolescentes dos quais tenho participado, tenho visto uma percepção muito superficial destes sobre sua própria realidade. Parecem estar anestesiados, muitas vezes não conseguem dizer o que vêem realmente. Por que isso vem acontecendo? Será que algo os reprime de alguma forma, consciente ou inconscientemente? Família, escola, sociedade, demais instituições? Eles têm muito a falar. São observadores de direitos dentro de suas casas. São o antídoto para nossas enfermidades sociais.  

Meu desejo é que essas crianças e adolescentes pudessem falar, simplesmente isso, o que pensam serem soluções para suas realidades. Pedimos subsídios para participação cidadã ativa, para capacitação e apoio aos grêmios estudantis, participações em conselhos... Isso é importante, mas a infância-adolescência não deve se tornar uma “mini fase adulta”.

 Em vez de propor, que tal agir? Em vez de debater, por exemplo, redução da maioridade penal, por que não trabalhar os adolescentes, pois eles podem ser mudados para o bem sim! Encher nossos presídios de seres humanos cheios de sonhos e expectativas, muitos deles frustrados, não os tornarão melhores e eliminarão as chances de isso acontecer. Far-nos-á regredir ao modo do “bem-estar da criança”, pautado pela vontade da sociedade e do Estado, e não pela necessidade e voz da criança e adolescente.


Quero voltar àquele bairro mais vezes. Identifiquei-me com aquele lugar com aquelas crianças. Lembro-me do nome de duas. Nomes de anjos. Um garotinho de um ano chamado Miguel, e o menininho que atirou a pedra no avô, Gabriel. Quero gastar os meus dias para fazer com que a infância e adolescência sejam fases de brilhante formação e produção para os nossos “brasileirinhos”.

Com amor em Cristo,
Ana ;)


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